terça-feira, 13 de setembro de 2011

"A menina de areia das madeixas de folhas"

            Certa vez, uma criança sem muitos amigos, desenhou, na areia de seu quintal, uma boneca. Ela fez os olhos, o nariz, o corpo e, delicadamente, como quem quisesse traçar um sonho, desenhou, com a pontinha de seu dedo indicador, um sorriso. Notou, no entanto, que a bonequinha, recém riscada na areia, parecia ainda não sorrir. A criança, então, perguntou:
— Menina de areia, o que lhe falta? Não quer ser minha amiga?
Distanciou-se um minuto e voltou com as mãozinhas cheias de folhas secas, aquelas que ainda não haviam sido varridas por sua tia.
— Pronto, aqui está! Agora você é uma menina de areia das madeixas de folhas! — disse a criança, sentindo que, pela primeira vez, a bonequinha parecia sorrir.
Com ela, a criança dividia todos os seus sonhos e segredos. E a menina de areia das madeixas de folhas, antes feita de simples riscos, tornou-se vida!
Juntas, elas conversavam sobre tudo, principalmente sobre o que existia além dos muros daquele quintal, o mundo de fantasias que até mesmo a criança só poderia imaginar. Sua tia não a deixava ir muito longe. Assim, a criança só conhecia o que ela podia ver através de sua janela no segundo andar. Havia dias em que ela passava horas e horas apenas observando o balanço das árvores. Amava a natureza e nunca se cansava de contar a sua amiga de areia, tudo o que sabia sobre ela.
            Houve um dia, porém, em que a criança mudou-se com sua tia para outro bosque bem distante do que viviam, e a Menina de Areia das Madeixas de Folhas perdeu, assim, a sua única amiga.
Desde então, passou a se sentir muito sozinha. Até que numa tarde...
— Ei! Cuidado com os meus cabelos, eles são frágeis! E, além do mais, me foram dados por uma grande amiga — disse a menina de areia ao Bem-te-vi desastrado que resolveu pousar justo em cima de suas madeixas de folhas.
— Uma menina de areia falando? Cruz-credo! — espantou-se o Bem-te-vi.
Depois do susto, os dois viraram bons amigos.
Horas mais tarde, depois de boas risadas e brincadeiras, a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, intrigada e curiosa, perguntou:
— Bem-te-vi amigo, você nunca teve vontade de ser outra coisa?
— Outra coisa? — repetiu ele.
— A natureza é feita de tantas coisas, não lhe agradaria ser uma coisa diferente de Bem-te-vi?
— Gosto de minha barriga amarela e de cantar ao amanhecer. Por quê? Não lhe agrada ser uma menina de areia?
— Antes até gostava. Agora me sinto sozinha, presa neste quintal. Queria poder olhar as coisas mais de perto, sentir o vento no rosto, ter uma porção de amigas pra conversar...
— Acho que posso lhe ajudar — disse, prestativo, o Bem-te-vi amigo.
— Sério?! Como?! 
— Aqui no bosque vive uma jovem feiticeira, daquelas que transformam tudo em todos e todos em tudo — explicou ele, animado em poder ajudar.
E foi então que o Bem-te-vi amigo trouxe a jovem feiticeira ao encontro da Menina de Areia das Madeixas de Folhas...
— Mas porque desejas transformar-se numa árvore? — perguntou, curiosa, a jovem feiticeira.
— Porque elas abraçam o mundo com seus galhos, oferecem sombra a quem precisa e, muitas vezes, podem até dar saborosos frutos — respondeu, em tom esplêndido, a Menina de Areia das Madeixas de Folhas.
— Dizem por aí que ser árvore é muito bom, mas também é perigoso. Há pessoas que as derrubam e até as queimam. Sabias disso? — perguntou a jovem feiticeira.
Não, a Menina de Areia das Madeixas de Folhas não conhecia a maldade. E, antes mesmo que ela pudesse responder a jovem feiticeira...  
— Mas, se assim desejas; que assim seja feito! Desta areia faço galhos e tronco, e destes cabelos faço folhas verdes e saborosos frutos...
TXUUMM – CABLUMM!
E assim foi feito o encanto.
A Menina de Areia das Madeixas de Folhas logo rompeu com o silêncio do bosque:
— Uau! Sinto-me uma gigante vendo as coisas daqui de cima. Olha lá a minha antiga casa, Bem-te-vi amigo! Veja como está distante! Veja! Sou grande! Sou natureza!
— Ufa! Sinto-me aliviado em saber que você está contente. Por um momento, pensei que você pudesse se arrepender — disse o Bem-te-vi amigo, ainda com os dedos cruzados e um dos olhos fechado.
— Arrepender-me? Bem-te-vi amigo, minha folhas eram secas, agora são verdes, eu não podia sair da areia de um quintal, agora posso ver todo o céu bem de pertinho — explicou ela, satisfeita.
Alguns dias se passaram e ser natureza era bom, mas a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que agora era árvore, se chateava bastante quando demorava a chover e suas belas folhas ficavam sequinhas, sequinhas; mas, ela se chateava mesmo, pra valer, era quando puxavam seus galhos, suas folhas e seus frutos, ainda imaturos, por pura maldade. Maldade essa que a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que agora era árvore, ainda não havia conhecido. Foi então que ela pensou:
— Tem tantas belezas na natureza... É de tantas maravilhas esse mundo... Para ser natureza, eu não preciso, necessariamente, ser uma árvore. Quero mesmo é ser um pássaro! Eles, sim, são livres e ainda podem ver, lá de cima, todas as coisas lindas desse mundo.
Parou e se voltou para o Bem-te-vi amigo.
— Você teve muita sorte de ter nascido com asas.
— Não tenho do que me queixar. Mas cuidado! Nem tudo é exatamente como parece — disse, preocupado, o Bem-te-vi amigo.
A Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que agora era árvore, não deu muita atenção ao que o Bem-te-vi amigo havia falado e pediu para que ele trouxesse, novamente, a jovem feiticeira ao seu encontro.
— Agora me pedes para ser um pássaro? — surpreendeu-se a jovem feiticeira. E continuou: — Não tenho tanta certeza de que serás feliz sendo algo que não és; mas, se assim desejas, que assim seja feito! Destes galhos faço asas, destas folhas faço penas e deste tronco faço um forte bico... TXUUMM – CABLUMM!
E a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore e agora é um pássaro, saiu voando forte e veloz, dizendo, para quem quisesse ouvir que, agora, além de ser natureza, ela era também muito livre; mas, ela falou alto, tão alto, que chamou muita à atenção e foi feita prisioneira numa pequena gaiola. Mas que triste! Ela agora era uma natureza sem liberdade.
O menino, que a colocou na gaiola, sabia que devia dar-lhe comida todos os dias, fazia carinho em sua cabeça e parecia gostar muito dela; mas, sabe do que ele não sabia? Que pássaros presos em gaiolas deixam de ser natureza. Pássaros presos em gaiolas não vivem felizes e só não choram porque pássaros não podem chorar.
Enquanto isso, a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore e agora é pássaro, gritava:
— Bem-te-vi amigo! Bem-te-vi amigo!
O Bem-te-vi amigo não tardou a responder:
— Teimosa! É isso que você é, uma teimosa! Você não nasceu com a agilidade dos pássaros! Alertei-lhe tanto para o perigo!
— Não foi minha intenção, Bem-te-vi amigo. Mas vá, procure a jovem feiticeira. Não posso viver nesta gaiola para sempre — disse ela, aflita.
Algumas horas depois...
— Nem me diga! Já sei! Agora queres ser um arco-íris com um pote de ouro no final! Adivinhei? — ironizou a jovem feiticeira.
— Não, jovem feiticeira, você não adivinhou! — respondeu ela, sem conter uma apressada gargalhada. E logo disse: — Na verdade eu quero ser uma coisa um pouco mais simples. Algo como... Uma formiga!
— Hum! Mais fácil do que eu poderia imaginar. Mas porque uma formiga?
— Ah jovem feiticeira, elas são tão amigas. Dividem as tarefas e têm sempre uma casinha só delas. Só assim para eu continuar sendo natureza.
— Se assim desejas, que assim seja feito — disse a jovem feiticeira, puxando a sua varinha. — Destas asas faço patas, destas penas faço antenas e deste forte bico, um lar tranqüilo e feliz... TXUUMM – CABLUMM!
E dentro do seu novo lar...
— Olá meninas! Grande essa casa, não? Onde eu durmo? Posso colocar minhas coisas aqui? Quente o dia de hoje, hein? — perguntava a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore, depois virou pássaro e agora é formiga, tentando se enturmar. E, cansada de não ouvir respostas, falou baixinho: — Ih! Que formigas mal-humoradas! Vou dar uma volta que é o melhor que eu faço.
Saiu desbravando a terra ao seu redor, contente com as mais diversas descobertas.
— Nossa! Como as coisas são grandes quando vistas daqui. As árvores parecem enormes castelos de folhas... E os pássaros, então, parecem aviões quando voam baixinho, baixinho...
Até que de repente...
— Ops! Fechou o tempo? Será que vai chover?
SPLOT!
— Ai! Ui! Ai! Ui! Mas que menino malvado! Aposto que pisou em mim de propósito — disse ela, toda dolorida. E, injuriada, começou um sermão: — Olha aqui grandalhão, só porque sou menor que você, não significa que pode sair por aí passando por cima de mim! Ouviu bem? Parece até que não olha por onde anda!
E, depois do triste episódio, a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore, depois virou pássaro e agora é formiga, decidiu:
— Nunca mais quero ser formiga! Vou até a torre da jovem feiticeira. Ela há de me transformar em outra natureza.
E foram dias e dias de uma longa viagem até que ela chegasse à torre da jovem feiticeira.
— Ah não! Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore, depois virou pássaro e agora é formiga, sua cota de feitiços se esgotou! Já chega! — disse a jovem feiticeira em tom de ocupada.
— Mas jovem feiticeira... Pisaram em mim, quebraram minha patinha e, ainda por cima, as outras formigas me deixam falando sozinha no formigueiro...
— Mas é claro, devem saber da tua fama de vira-tudo-todo-dia — concluiu.
— Jovem feiticeira, eu juro, pela minha patinha quebrada, que essa vai ser a última vez — implorou.
A jovem feiticeira, novamente em tom de ironia, perguntou:
— Sei! E eu te transformo no quê? Numa girafa pintada de zebra?
— Ha! Ha! Ha! Ha! Deve ser muito engraçado uma girafa pintada de zebra; mas, na verdade mesmo, eu gostaria de ser transformada em um lago... Daqueles bem brilhantes, para poder servir de abrigo aos peixes e não poder ser pisoteada por ninguém. E dessa vez é certeza — disse convicta.
— Espero que sim, pois tenho outros encantos a serem feitos, e tu acabas por tomar todo o meu tempo; mas, se assim desejas, que assim seja feito — disse a jovem feiticeira mais uma vez. E assim realizou o feitiço. — Destas patas faço água e... É... É... É isso! Apenas água! É somente disso que os bonitos lagos são feitos mesmo... TXUUMM – CABLUMM!
Imediatamente, caíram do céu lindos peixinhos de todas as cores, belezas e tamanhos. E, como se tivesse, enfim, acertado o pedido, a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore, depois virou pássaro, mais tarde formiga e agora é lago, borbulhou de alegria:
— Ah, como é bom ser lago! Como é bom ser natureza!
E os dias se mostraram tranquilos e felizes; mas, como sempre havia quem a incomodasse, ela logo começou a reclamar:
— Ei! Não! Você não deve jogar biscoitos em mim, não é disso que os peixinhos se alimentam. Ei! Você não está me ouvindo? Já disse, não é disso que os peixinhos se alimentam! Não me sujem, por favor, sou tão saudável e brilhante. Não me machuquem. As outras naturezas precisam de mim...
E foi assim que a Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore, depois virou pássaro, mais tarde formiga e agora é um lago, decidiu conversar com a jovem feiticeira para resolver, de uma vez por todas, esse tal problema de ser natureza.
Mas, antes mesmo que qualquer pedido fosse feito, a jovem feiticeira falou:
— Não, eu não vou te transformar em mais nada. Já cansei destas tuas esquisitices!
— Mas jovem feiticeira... Não desejo mais ser transformada — murmurou baixinho.
Falou sem pensar e voltou atrás.
— Aliás, desejo sim! Desejo ser a menina de areia das madeixas de folhas que sempre fui.
— Mas... Responda-me! Essa confusão toda não era porque tu querias porque querias ser natureza?
— Pois é, jovem feiticeira, mas sendo árvore, pássaro, formiga e lago, eu acabei percebendo que não preciso ser nenhuma dessas coisas para ser natureza. Ser natureza está no respeito a ela e nas nossas boas atitudes que a tornam cada vez mais rica e bela. Ser natureza, jovem feiticeira, não está na nossa forma de ser, mas na nossa forma de agir. Por isso, quero ser a menina de areia das madeixas de folhas que sempre fui, e, ainda assim, ser natureza!
— Que bonito, Menina de Areia das Madeixas de Folhas, que era árvore, depois virou pássaro, mais tarde formiga e agora é um lago! Confesso que estou surpresa com o teu pedido. E quer saber? Faço questão de atendê-lo...
Satisfeita, a jovem feiticeira fez o seu último feitiço para a Menina de Areia das Madeixas de Folhas...
— Desta água faço uma menina de areia e... Hã... Desta mesma e única água faço também lindas madeixas de folhas...
TXUUMM – CABLUMM!
— Como é bom ser uma menina de areia das madeixas de folhas novamente! Obrigada, jovem feiticeira! Você não imagina o quanto estou feliz!
— Mas sabe o que é uma pena, jovem feiticeira? — perguntou pensativa.
           — Que nem todo mundo perceba o quanto é importante ser natureza.

Mari Lima






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